quinta-feira, 18 de março de 2010

As Seis Perfeições (Paramitas)

As Seis Perfeições (Paramitas)

As seis paramitas são ensinamentos do Budismo Mahayana. Paramita é uma palavra que pode ser traduzida como "perfeição" ou "realização perfeita". O ideograma chinês para este termo significa "atravessar para a outra margem", que é a margem da coragem, da paz e da libertação. As perfeições devem ser praticadas em nossa vida diária. Estamos atualmente na margem do sofrimento, da raiva e da depressão, e queremos atravessar para a margem do bem-estar. Para atravessar, é preciso fazer alguma coisa, e é a isso que chamamos de perfeição. Assim, voltamos para nós mesmos, praticamos a respiração consciente e olhando nosso sofrimento, nossa raiva, nossa depressão, e sorrimos. Ao fazer isso, superamos a dor e atravessamos. Devemos praticar as "perfeições" todos os dias.

Todas as vezes que damos um passo consciente, temos a oportunidade de sair da terra da tristeza para a terra da alegria. A Terra Pura está disponível aqui e agora. O Reino de Deus é uma semente dentro de nós. Se soubermos plantar essa semente em um bom solo, ela se tornará uma árvore, onde os pássaros virão se refugiar. Pratiquem a travessia para a outra margem sempre que sentirem necessidade. O Buda disse: "Não fique esperando que a outra margem venha até você. Se quiser atravessar para chegar à margem da segurança, do bem-estar, da coragem e da ausência de raiva, terá que nadar ou remar. Você precisa fazer um esforço." Esse esforço é a prática das Seis Perfeições.

(1) Dana paramita - Doação, generosidade, oferta.
(2) Shila paramita - Os preceitos ou treinamentos da atenção plena.
(3) Kshanti paramita - Tolerância, a capacidade de acolher, suportar e transformar a dor infligida a você por seus inimigos e também pelas pessoas que o amam.
(4) Virya paramita - O esforço, energia, perseverança.
(5) Dhyana paramita - A meditação.
(6) Prajna paramita - A sabedoria, compreensão, insight.

Praticar as seis perfeições ajuda a atingir a outra margem - a margem da liberdade, da harmonia e dos bons relacionamentos.

A primeira prática da travessia é a perfeição da generosidade (a dana paramita). Dar significa, primeiro, oferecer alegria, felicidade e amor. Existe uma planta, muito conhecida na Ásia - um membro da família das cebolas, que fica deliciosa nas sopas, no arroz frito e nos omeletes - que a cada vez que a cortamos torna a crescer em vinte e quatro horas. E quanto mais se corta essa planta, maior e mais forte ela cresce. A planta representa a dana paramita. Não guardamos nada para nós. Apenas queremos dar. Talvez a outra pessoa se sinta feliz com isso, mas com certeza os maiores beneficiados seremos nós mesmos. Em diversas histórias sobre as vidas passadas de Buda, nós o encontramos praticando a perfeição da generosidade.

A maior dádiva que podemos dar a alguém é nossa presença verdadeira. Um menino que conheço ouviu de seu pai: "O que você quer de aniversário?" O menino hesitou. O pai era rico e podia lhe dar o que pedisse. Mas passava tanto tempo ganhando dinheiro que quase nunca estava com a família. Por isso, o menino respondeu: "Pai, eu quero você!" A mensagem era clara. Se amamos alguém, temos que ofertar nossa presença verdadeira a essa pessoa. Quando damos esse presente, recebemos ao mesmo tempo o presente da alegria. Aprenda a oferecer sua presença verdadeira através da meditação. Inspirando conscientemente, promova a união do corpo e da mente. "Querido, estou aqui para você" é um mantra a ser repetido quando praticar essa perfeição.

O que mais podemos oferecer? Nossa estabilidade. "Inspirando, eu sou uma montanha. Expirando, eu me sinto firme." A pessoa que amamos necessita de que sejamos firmes e estáveis. Podemos cultivar nossa estabilidade através da inspiração e da expiração, da caminhada com atenção plena, da meditação sentada, e também gostando de viver profundamente cada momento. A firmeza é uma das características do Nirvana.

O que mais podemos oferecer? Nossa liberdade. A felicidade não é possível, a menos que estejamos livres de aflições tais como desejo, raiva, ciúme, medo, ou percepções errôneas. A liberdade é uma das características do Nirvana. Alguns tipos de felicidade são realmente destrutivos para o corpo, a mente e os relacionamentos. Estar livre de desejos é uma prática importante. Contemple profundamente a natureza daquilo que você acha que vai lhe proporcionar felicidade e pense se, de fato, isso pode implicar sofrimento para aqueles que ama. É preciso ter certeza disso se queremos ser realmente livres. Volte-se para o momento presente, e desfrute as maravilhas da vida que estão disponíveis. Existem tantas coisas saudáveis capazes de nos proporcionar felicidade, como por exemplo um lindo nascer do sol, o céu azul, montanhas, rios, e os rostos felizes das pessoas que nos cercam.

O que mais podemos oferecer? Nosso frescor. "Inspirando, eu me vejo como uma flor. Expirando, eu me sinto com o frescor." Podemos inspirar e expirar três vezes para restaurar a flor dentro de nós. É um grande presente!

O que mais podemos oferecer? Paz. É maravilhoso sentar-se ao lado de alguém que esteja em paz. Nós nos beneficiamos com a sua paz. "Inspirando, eu sou a água calma. Expirando, reflito as coisas como elas são." Podemos oferecer nossa paz e nossa lucidez para aqueles que amamos.

O que mais podemos oferecer? Espaço. A pessoa amada precisa de espaço para ser feliz. Em um arranjo de flores, cada flor precisa de espaço ao seu redor para poder irradiar sua verdadeira beleza. As pessoas são como flores. Sem espaço interno e externo elas não podem ser felizes. Não podemos comprar este tipo de presente na loja. Temos que produzi-lo através da prática. E quanto mais dermos, mais teremos. Quando a pessoa que amamos está feliz, esta felicidade retorna para nós imediatamente. Nós damos algo a essa pessoa, mas na verdade estamos dando a nós mesmos.

Dar é uma prática maravilhosa. O Buda disse que quando se está zangado com alguém, a ponto de tentar de tudo e ainda continuar zangado, devemos praticar a perfeição da generosidade. Quando estamos com raiva, nossa tendência é punir a outra pessoa. Mas ao fazer isso só aumentamos nosso sofrimento. O Buda propôs que, em vez disso, mandássemos um presente para a pessoa que é motivo de nossa raiva. Quando estamos com muita raiva, não temos a menor vontade de sair e comprar um presente, por isso temos que preparar esse presente enquanto não estamos zangados. A seguir, quando tudo o mais falhar, devemos sair e enviar o presente para a pessoa. Constataremos, para nosso espanto, que logo estamos nos sentindo melhor. Você recebe aquilo que dá. Em vez de tentar punir a outra pessoa, ofereça exatamente aquilo de que a pessoa necessita. A prática da doação pode conduzir rapidamente ao bem-estar.

Quando alguém nos faz sofrer, é porque essa pessoa sofre profundamente dentro de si mesma, e seu sofrimento está se esparramando do lado de fora. Esta pessoa não precisa de mais sofrimento, precisa de ajuda. Essa é a mensagem que está sendo enviada. Se você conseguir entender isso, ofereça o que a pessoa precisa - alívio. Felicidade e segurança não são questões individuais. A felicidade e a segurança do outro são fundamentais para a sua felicidade e a sua segurança. Deseje o bem do outro com sinceridade, para que você também fique bem.

O que mais podemos oferecer? Compreensão. A compreensão é a flor da prática. Focalize sua atenção concentrada em um objeto, observe profundamente o objeto, e você terá insight e compreensão. Ao oferecer compreensão aos outros, eles deixarão imediatamente de sofrer.

A primeira pétala da flor das perfeições é a prática da generosidade. Recebemos aquilo que damos, muito mais depressa do que os sinais enviados por satélite. Quer você dê sua presença, sua estabilidade, seu frescor, sua firmeza, sua liberdade, ou sua compreensão, sua dádiva fará milagres. A generosidade é a prática do amor.

A segunda prática é o aperfeiçoamento dos preceitos, ou treinamentos da atenção plena. Os Cinco Treinamentos da Atenção Plena ajudam a proteger o corpo, a mente, a família e a sociedade. O Primeiro Treinamento da Atenção Plena versa sobre proteger as vidas dos seres humanos, animais, vegetais e minerais. Proteger outros seres significa proteger a nós mesmos. O segundo treinamento versa sobre impedir a exploração de seres humanos, de outros seres vivos e da natureza. Relaciona-se com a prática da generosidade. O terceiro tem a ver com proteger crianças e adultos do abuso sexual, e preservar a felicidade dos indivíduos e das famílias. Muitas famílias já foram separadas devido à má conduta sexual. Quando praticamos o Terceiro Treinamento da Atenção Plena, protegemos a nós mesmos, as famílias e os casais, porque ajudamos os outros a se sentirem seguros. O Quarto Treinamento da Atenção Plena versa sobre praticar a fala amorosa e a escuta atenciosa. O Quinto Treinamento da Atenção Plena é sobre consumir de maneira consciente.

A prática dos Cinco Treinamentos da Atenção Plena é uma forma de amor e de doação. Assegura a boa saúde e a proteção da nossa família e da sociedade. Shila paramita é uma grande dádiva que oferecemos à sociedade, à família e àqueles a quem amamos. A maior dádiva que podemos ofertar aos outros é praticar os Cinco Treinamentos da Atenção Plena. Se vivermos de acordo com eles, estaremos protegendo a nós mesmos e as pessoas que amamos. Quando praticamos shila paramita, oferecemos o precioso presente da vida.

Vamos contemplar juntos as causas de nosso sofrimento, seja ele individual ou coletivo. Se fizermos isso, veremos que os Cinco Treinamentos da Atenção Plena são o remédio necessário para a doença de nossa época. Todas as tradições têm o equivalente aos Cinco Treinamentos da Atenção Plena. Cada vez que vejo alguém receber e praticar os Cinco Treinamentos da Atenção Plena, fico feliz - pela pessoa, por sua família e por mim mesmo - porque sei que essa é a forma mais objetiva possível de se ter consciência de tudo o que ocorre. Precisamos de uma Sangha ao nosso redor para poder praticar com profundidade.



A terceira pétala da flor é a tolerância, kshanti paramita. A tolerância é a capacidade de receber, aceitar e transformar as coisas. Kshanti às vezes é traduzida também por paciência ou resignação, mas acho que "tolerância" é uma palavra que denota melhor o ensinamento de Buda. Quando praticamos a tolerância, não precisamos sofrer nem nos resignarmos, mesmo quando precisamos aceitar o sofrimento ou a injustiça, quando alguém diz ou faz algo que nos deixa com raiva, ou quando talvez algum tipo de injustiça é cometido contra nós. Mas se o coração for grande o bastante, não sofreremos.

O Buda oferece uma linda imagem sobre isso. Se pegarmos um punhado de sal e colocarmos em uma tigela com água, a água ficará salgada demais para beber. Mas a mesma quantidade de sal colocada em um grande rio não afetará sua água, e as pessoas ainda poderão bebê-la (lembrem-se de que esse ensinamento foi dado há 2.600 anos, quando ainda era possível beber água dos rios!). Devido à sua imensidão, o rio tem a capacidade de receber e transformar. O rio não sofre por causa de um punhado de sal. Se o seu coração for pequeno, uma palavra ou ação injusta fará você sofrer, mas se o coração for grande, e se tiver compreensão e compaixão, a palavra ou ação injusta não terá o poder de lhe causar sofrimento, porque você terá a capacidade de receber, aceitar e transformar rapidamente. O que conta aqui é a sua capacidade. Para poder transformar o sofrimento, o coração precisa ser grande como um oceano. Outra pessoa talvez sofra, mas se um bodhisattva ouvir as mesmas palavras desagradáveis não sofrerá. Tudo depende da forma de receber, aceitar e transformar. Se você guardar uma dor por muito tempo, é porque ainda não aprendeu a prática da tolerância.

Quando Rahula, o filho de Buda, fez dezoito anos, o Buda fez uma linda palestra sobre o Darma, em que falava sobre como praticar a tolerância. Shariputra, o tutor de Rahula, estava presente e ouviu atentamente, absorvendo os ensinamentos. Doze anos mais tarde, Shariputra teve a oportunidade de repetir esse ensinamento para uma congregação de monges e monjas. Foi no dia seguinte ao término de um retiro de três meses, durante uma estação chuvosa, quando todos os monges estavam se aprontando para ir embora e seguir em diferentes direções pregando os ensinamentos. Naquele dia, um monge disse ao Buda: "Senhor, esta manhã, quando o Venerável Shariputra ia partir, eu perguntei a ele onde ia, e em vez de responder à minha pergunta, ele me jogou no chão e nem sequer pediu desculpas."

O Buda perguntou a Ananda: "Shariputra já está muito longe?" e Ananda disse: "Não, Senhor, ele partiu há apenas uma hora." Então Buda pediu a um noviço que alcançasse Shariputra, convidando-o a voltar. Quando o noviço voltou acompanhado de Shariputra, Ananda convocou todos os monges que ainda estavam por lá. A seguir, o Buda entrou e perguntou formalmente: "Shariputra, é verdade que esta manhã quando você ia sair do mosteiro um irmão lhe fez uma pergunta, e você não respondeu? É verdade que em vez de responder você jogou o irmão no chão e nem sequer pediu desculpas?" E Shariputra respondeu a Buda diante de todos os monges e monjas da congregação.

"Senhor, eu me lembro do discurso que o senhor fez há doze anos para o monge Rahula, quando ele fez dezoito anos. O senhor ensinou-o a contemplar a natureza da terra, da água, do fogo e do ar, para desenvolver as virtudes do amor, da compaixão, da alegria e da equanimidade. Apesar de seu ensinamento ser dirigido a Rahula, eu também aprendi com ele, e tenho tentado observar e praticar este ensinamento.”

"Senhor, eu tenho tentado praticar como a terra. A terra é grande e aberta, e tem a capacidade de receber, aceitar e transformar. Quando as pessoas jogam sobre a terra substâncias puras e perfumadas, como por exemplo flores, perfumes ou leite fresco, ou mesmo quando jogam nela substâncias repugnantes como excremento, urina, sangue, catarro ou cuspe, a terra recebe tudo da mesma maneira, sem apego nem repulsa. Não importa o que jogamos na terra, ela sempre acolhe, aceita e transforma tudo aquilo que recebe. Eu faço o que posso para ser como a terra, a tudo recebendo sem resistir, sem me queixar, nem sofrer.”

"Senhor, eu pratico a atenção plena e a bondade amorosa. Um monge que não pratica a atenção plena ao corpo no corpo e às ações do corpo nas ações do corpo, poderia derrubar outro monge e deixa-lo lá deitado, sem pedir desculpas. Mas eu não costumo ser grosseiro com meus colegas, empurrando-os e indo embora sem pedir desculpas.”

"Senhor, eu aprendi a lição dada a Rahula, ou seja, que praticasse para me tornar como a água. Quando alguém derrama uma substância perfumada ou impura na água, ela recebe as duas coisas da mesma maneira, sem apego, sem aversão. A água é imensa, fluida, e tem a capacidade de receber, conter, transformar e purificar todas as coisas. Eu fiz o melhor que pude para me assemelhar à água. Um monge que não pratica a atenção plena, que não tenta se assemelhar à água, poderia ser grosseiro com seus colegas, empurrando-os e indo embora sem pedir desculpas, mas eu não sou assim.”

"Meu Senhor, eu tenho praticado me assemelhar ao fogo. O fogo queima tudo, tanto o que é puro como o que é impuro, o belo e o repugnante, sem apego nem aversão. Se jogarmos flores ou seda no fogo, elas queimarão. Se jogarmos roupas velhas ou substâncias mal cheirosas, o fogo aceitará tudo da mesma maneira e queimará da mesma forma. Ele não discrimina. Por quê? Porque o fogo é capaz de receber, consumir e queimar todas as coisas que lhe são oferecidas. Eu tenho tentado ser como o fogo. Consigo queimar as coisas negativas para transformá-las. Um monge que não pratica a atenção plena ao olhar, ouvir e contemplar, poderia ser grosseiro com seus colegas, empurrando-os e indo embora sem pedir desculpas, mas eu não sou assim.”

"Senhor, tenho tentado praticar para ser como o ar. O ar carrega todos os cheiros, bons e maus, sem apego nem aversão. O ar tem a capacidade de transformar, purificar e soltar todas as coisas. Senhor Buda, eu contemplei o corpo no corpo, o movimento do corpo no movimento do corpo, as posições do corpo nas posições no corpo, as sensações nas sensações e a mente na mente. Um monge que não pratica a atenção plena poderia jogar seu colega no chão, empurrando-o e ir embora sem pedir desculpas, mas eu não sou assim.”

"Meu Senhor, eu sou como uma criança da casta dos 'intocáveis', que não tem nada para vestir, nenhum título ou medalha para pendurar nos trapos rotos. Tenho tentado praticar a humildade, porque sei que a humildade tem o poder da transformação. Todos os dias eu tento aprender. Um monge que não pratica a atenção plena poderia ser grosseiro com seus colegas, empurrando-os e indo embora sem pedir desculpas, mas eu não sou assim."

Shariputra continuou com seu discurso, o "Rugido do Leão", mas o outro monge, arrependido, descobriu o ombro direito e se ajoelhou, pedindo perdão: "Senhor, eu violei a Vinaya (regras de disciplina monástica). Por raiva e por ciúmes, eu disse uma mentira para desacreditar meu irmão mais velho no Darma. Eu imploro à comunidade que me permita praticar o Começar de Novo." Diante do Buda e de toda a Sangha, ele se prostrou três vezes para Shariputra. Quando Shariputra viu seu irmão prostrado, inclinou-se e disse: "Eu não tenho sido hábil o bastante, e por isso criei o mal-entendido. Eu sou também responsável por isso, e peço a meu irmão que me perdoe." A seguir ele também se prostrou três vezes diante do outro monge, e os dois se reconciliaram. Ananda pediu a Shariputra para ficar para uma xícara de chá antes de partir novamente em sua jornada.

Reprimir nossa dor certamente não é o ensinamento da tolerância. Temos que recebê-la, aceitá-la e transformá-la. A única forma de fazer isso é tornando o nosso coração maior. Nós contemplamos em profundidade para compreender e perdoar, caso contrário ficaremos aprisionados pela raiva e pelo ódio, e acharemos que a única forma de nos sentirmos melhor é castigar a outra pessoa. A vingança é um alimento não-saudável. A intenção de ajudar os outros, ao contrário, é extremamente saudável.

Para praticar a kshanti paramita, precisamos das outras perfeições. Se a nossa prática da tolerância não abarcar a compreensão, a generosidade e a meditação, estaremos apenas tentando esconder nossa dor, empurrando-a para o fundo da consciência. Isto é perigoso. Este tipo de energia irrompe mais tarde, destruindo a nós e os outros. Se praticarmos a contemplação em profundidade, nosso coração crescerá sem limites e nós sofreremos menos.


Quando alimentamos ódio e raiva, sentimo-nos queimar por dentro. A única forma de escapar é a compreensão. Quando compreendemos, sofremos menos e saberemos como atingir a raiz da injustiça. O Buda disse que se uma flecha nos atingir, sofreremos. Mas se uma segunda flecha nos atingir no mesmo lugar, sofreremos cem vezes mais. Quando somos vítimas de injustiça, se nos permitirmos a raiva, sofreremos cem vezes mais. Quando temos uma dor em nosso corpo, devemos inspirar e expirar, dizendo a nós mesmos: "É apenas uma dor física." Se ficarmos pensando que é um câncer e que vamos morrer logo, a dor será cem vezes pior. O medo e o ódio, nascidos da ignorância, amplificam nossa dor. Quem nos salva é a prajna paramita. Se conseguirmos ver as coisas como são, em si mesmas, não enxergando nada mais do que isso, sobreviveremos.


Por favor, pratiquem a contemplação profunda, e vocês sofrerão muito menos com as doenças, injustiças e pequenas dores que existem dentro de vocês. A contemplação profunda conduz à compreensão, e a compreensão conduz ao amor e à tolerância. Quando seu bebê está doente, você faz o que pode para ajudá-lo, evidentemente. Mas ao mesmo tempo você sabe que um bebê precisa ficar doente um determinado número de vezes para adquirir a imunidade de que necessita. Ao sofrer, você também sabe que irá sobreviver, porque já desenvolveu anticorpos. Não se preocupe. "Saúde perfeita" é apenas uma idéia, nada mais. Aprenda a viver em paz com os problemas que tiver. Tente transformá-los, mas não sofra demasiado.

Durante a sua vida, Buda também sofreu. Havia intrigas para competir com ele, e até mesmo para eliminá-lo. Uma vez, quando tinha uma ferida na perna e algumas pessoas tentaram ajudar, ele disse que era só uma pequena ferida, e fez o que pôde para minimizar a dor. Em outra ocasião, quinhentos monges seus saíram para montar uma Sangha concorrente, e ele aceitou isso sem reclamar. Finalmente, as dificuldades estavam a ponto de serem vencidas.


A quarta pétala da flor é a virya paramita, a perfeição do esforço, a energia ou a prática contínua. O Buda disse que no fundo da nossa consciência armazenadora, alaya vijnana, existem diversos tipos de sementes, positivas e negativas - sementes de raiva, ilusão e medo, assim como sementes de compreensão, compaixão e perdão. Muitas dessas sementes nos foram transmitidas por nossos ancestrais. Deveríamos aprender a reconhecer cada uma delas dentro de nós, para poder praticar o esforço. No caso de uma semente negativa, como raiva, medo, ciúmes ou discriminação, deveríamos evitar que fosse irrigada na vida cotidiana, porque cada vez que tal semente é regada ela aparece na camada superior de nossa consciência, o que significa sofrimento, para nós e para aqueles que nos cercam. A prática é impedir que a semente negativa seja regada.

Também reconhecemos as sementes negativas nas pessoas amadas, e tentamos não regá-las. Se o fizermos, os seres que amamos serão infelizes, e conseqüentemente nós também. Essa é a prática da "irrigação seletiva". Se você quer ser feliz, evite regar suas próprias sementes negativas e também as dos outros, e peça aos que o cercam que evitem regar as sementes que existem em você.

Tentamos reconhecer nossas sementes positivas, e viver nossa vida diária de tal forma que possamos ter contato com elas e ajudá-las a se manifestar na camada superior da nossa consciência, a mano vijnana. Cada vez que essas sementes se manifestam e permanecem lá por algum tempo, ficam mais fortes. Se as sementes positivas ficarem mais fortes, seremos mais felizes e tornaremos felizes aqueles que nos cercam. Reconheça as sementes positivas na pessoa que você ama, regue essas sementes, e essa pessoa ficará cada vez mais feliz. Quando tiver tempo, por favor regue tudo o que há para ser regado. É uma grande prática de esforço, e traz resultados imediatos.


Imagine um círculo dividido em dois. Embaixo está a consciência armazenadora e em cima a consciência mental. Todas as formações mentais estão no fundo da consciência armazenadora. Todas as sementes podem se manifestar no nível superior, ou seja, na consciência mental. A prática consiste em fazer o melhor que pudermos para não deixar que as nossas sementes negativas sejam atingidas no dia-a-dia, para que não tenham oportunidade de se manifestar. As sementes da raiva, discriminação, desespero, ciúmes e desejo estão todas presentes. Fazemos o que podemos para impedi-las de subir. Dizemos às pessoas com quem vivemos: "Se você realmente me ama, não regue essas sementes em mim. Não é bom para a minha saúde nem para a sua." Temos que saber quais os tipos de sementes que não devem ser alimentados. Caso uma semente negativa, uma semente de dor, for regada e se manifestar, usaremos todo o nosso poder para abraçá-la com nossa atenção plena e ajudá-la a voltar para o lugar de onde veio. Quanto mais tempo tais sementes ficarem na consciência mental, mais fortes se tornarão.

O Buda sugeriu uma prática chamada "trocar a cavilha". Quando uma cavilha de madeira não é do tamanho certo, ou está podre, ou está quebrada, o carpinteiro a substitui por outra, colocando a nova cavilha exatamente no lugar da velha e martelando em cima. Se em você surgir uma formação mental considerada não-saudável, pratique convidando uma formação mental saudável para substituí-la. Existem diversas sementes lindas e saudáveis em nossa consciência armazenadora. Apenas inspire e expire, convidando uma delas a subir e a não sadia descerá. Isto se chama de "trocar a cavilha".

Outra prática consiste em tocar tantas sementes positivas na consciência armazenadora quantas possível, para que se manifestem na consciência mental. Em um aparelho de televisão, quando queremos assistir a um determinado programa, apertamos o botão correspondente. Portanto, só chame sementes agradáveis para a sala de sua consciência. Nunca convide uma visita que vai lhe trazer tristeza e aflições. E diga aos seus amigos: "Se vocês gostam de mim, por favor, alimentem as boas sementes que existem em mim." Uma semente fantástica é a atenção plena. A atenção plena é o Buda em nós. Use todas as oportunidades que tiver para regá-la e para fazer com que se manifeste no nível superior da consciência.

A quarta prática é manter uma semente saudável o mais tempo possível depois que ela se manifestou. Se a atenção plena for mantida por quinze minutos, a semente da atenção plena será fortalecida, e da próxima vez que você precisar da energia da atenção plena será mais fácil trazê-la à superfície. É muito importante ajudar as sementes da atenção plena, do perdão e da compaixão a crescerem, e a melhor forma de fazer isso é mantê-las na consciência mental o máximo de tempo possível. Isso se chama transformação na base - ashraya paravritti. Este é o verdadeiro sentido da virya paramita, a perfeição do esforço.

A quinta prática é a dhyana paramita, a perfeição da meditação. Dhyana é chamada de zen em japonês, chan em chinês, thien em vietnamita e son em coreano. A dhyana, ou meditação, tem dois atributos. O primeiro é o de parar (shamatha). Nós passamos nossa vida correndo atrás de uma idéia ou outra de felicidade. Parar significa parar de correr, parar de esquecer, parar de estar sempre preso no passado ou no futuro. Voltamos para casa, para o momento presente, onde a vida realmente se desenrola. Esse momento contém todos os outros momentos. Aqui podemos entrar em contato com nossos ancestrais, nossos filhos e netos, mesmo que eles ainda não tenham nascido. Shamatha é a prática de acalmar nosso corpo e nossas emoções através da prática de respirar consciente, caminhar consciente e meditar consciente. A shamatha é também a prática da concentração, para que possamos viver cada momento intensamente e entrar em contato com o nível mais profundo de nosso ser.

O segundo aspecto da meditação é olhar em profundidade (vipashyana), para ver a verdadeira natureza das coisas. Você olha com profundidade a pessoa que ama e descobre que tipos de sofrimento ou de dificuldades ela traz dentro de si, e também suas aspirações e anseios. A compreensão é uma grande dádiva, mas uma vida diária conduzida com atenção plena também é uma dádiva. Fazer tudo conscientemente é a prática da meditação, porque a atenção plena sempre alimenta a concentração e a compreensão.

A sexta pétala da flor é a prajna paramita, a perfeição da sabedoria. Este é o tipo mais elevado de compreensão, que se situa além de todo o conhecimento, conceitos, idéias e pontos de vista. Prajna é a natureza de Buda que existe em nós. É o tipo de compreensão que tem o poder de nos levar à outra margem, a margem da liberdade, da emancipação e da paz. No Budismo Mahayana a prajna paramita é descrita como a Mãe de Todos os Budas. Tudo o que é bom, lindo e verdadeiro nasce de nossa mãe, a prajna paramita. Ela está em nós, só precisamos atingi-Ia para que ela se manifeste. A Compreensão Correta é a prajna paramita.

Existe muita literatura sobre essa perfeição, e o Sutra do Coração é um dos discursos mais curtos sobre o assunto. O Sutra do Diamante e o Ashtasahasrika Prajnaparamita (Discurso dos 8.000 versos) são os mais antigos de todos. A prajna paramita é a sabedoria da não-discriminação.

Se você observar bem a pessoa amada, conseguirá entender seu sofrimento, suas dificuldades, e também suas aspirações mais profundas. E esta compreensão tornará possível o verdadeiro amor. Quando alguém nos entende, sentimo-nos felizes. Se pudermos oferecer compreensão a alguém, este é o verdadeiro amor. A pessoa que recebe nossa compreensão desabrocha como uma flor, e ao mesmo tempo nós também somos recompensados. A compreensão é o fruto da prática. Olhar em profundidade significa estar lá, estar atento, estar concentrado. Ao olharmos em profundidade para um objeto, fazemos com que a compreensão floresça. O ensinamento de Buda nos ajuda a entender a realidade de forma mais completa.

Olhem uma onda na superfície do oceano. Uma onda é uma onda. Ela tem um começo e um fim. Pode ser alta ou baixa, mais bonita ou menos bonita que as outras ondas. Mas, ao mesmo tempo, uma onda nada mais é do que água. A água é o fundamento do ser da onda. É importante que a onda saiba que ela é água, e não apenas uma onda.

Nós também vivemos nossa vida como indivíduos. Acreditamos que temos um começo e um fim, e que estamos separados dos outros seres vivos. É por isso que Buda nos aconselhou a olhar mais profundamente até atingir o fundamento de nosso ser, o Nirvana. Todas as coisas trazem em si a natureza do Nirvana. Tudo já foi "nirvanizado". Esta é a razão do ensinamento do Sutra do Lótus. Quando contemplamos profundamente, tocamos a natureza da realidade. Ao contemplar uma pedra, uma flor, ou nossa própria alegria, paz, tristeza ou medo, entramos em contato com a dimensão maior do existir, que nos revelará que temos a natureza do não-nascimento e da não-morte.

Nós não precisamos atingir o Nirvana, porque sempre estivemos lá. A onda não tem que procurar água. Ela já é água. Nós somos o alicerce de nosso ser. Quando a onda entende que ela é água, todo o seu medo desaparece. Depois que tocamos o chão do existir, depois que tocamos Deus ou o Nirvana, recebemos a dádiva da ausência de medo, que é a base da verdadeira felicidade. O maior presente que podemos oferecer a outros é nossa falta de medo. Ao viver com intensidade todos os momentos de nossa vida, tocando o nível mais profundo de nosso ser, estamos praticando a prajna paramita. A prajna paramita é atravessar para o outro lado com a compreensão, com o insight.(...)

Olhe para a sua situação e veja como você é rico internamente. Reconheça que tudo o que você tem no momento é um presente. Sem esperar nem mais um minuto, comece a praticar. Quando começar a praticar, vai se sentir imediatamente mais feliz. O Darma não é uma questão de tempo. Verifique isso por si mesmo: o Darma pode transformar sua vida.

Quando você está preso à tristeza, ao sofrimento, à depressão, à raiva ou ao medo, não fique na margem do rio em que existe o sofrimento. Passe para a outra margem, onde há liberdade e não existem medo nem raiva. Pratique a respiração consciente, a caminhada consciente, a contemplação profunda, e acabará passando para a margem da liberdade e do bem-estar. Não é necessário praticar por cinco, dez ou vinte anos para conseguir atravessar para a outra margem. Você pode fazer agora.

(Do livro “A essência dos ensinamentos de Buda” – Thich Nhat Hanh)